Fernando Herren Aguillar
Podemos melhorar a universidade privada brasileira
Atualizado: 24 de abr. de 2020

“O desafio é oferecer aos alunos mais necessitados escolas de alta qualidade, capazes de transformar seu destino.”
Fernando Herren Aguillar, professor da Universidade de São Paulo - USP (2006-2015), Diretor de Faculdades de Direito e de Relações Internacionais (2001-2019)
1. Introdução
A universidade privada brasileira vive um momento de decisão importante, num cenário de aumento agressivo da participação de grandes conglomerados educacionais. Cada mantenedor de Curso de Direito se vê hoje forçado a optar por uma de duas vias: firmar-se como uma IES que atrai alunos por sua qualidade de ensino ou aderir à massificação e ao nivelamento por baixo que decorre dela.
O objetivo deste artigo é o de analisar os fundamentos dessa afirmação e oferecer alternativas aos que desejam optar pela via do aumento da qualidade de seu Curso de Direito.
2. As políticas federais de acesso à universidade
O papel das universidades privadas no Brasil é de fundamental importância no desenho que foi concebido e implementado no Brasil nos últimos 25 anos. Os governos se perguntaram como fazer para aumentar o acesso ao ensino universitário - até então um privilégio para poucos - na ausência de recursos públicos. Desde o Ministro Paulo Renato Souza, no governo FHC, passando por todos os governos posteriores, a resposta dada foi a de atribuir às universidades privadas a função de suprir uma imensa demanda reprimida. Portanto, a despeito das diferenças ideológicas de diversos governos, consolidou-se o diagnóstico sobre a importância fundamental do investimento privado na educação superior.
Em 1995, havia 894 Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil, sendo 76,5% privadas e 23,4% públicas. Havia 1.759.703 alunos matriculados no ensino superior, para uma população de 157.070.163 habitantes (1996, IBGE). Premidos pela necessidade de expandir a oferta de vagas e alcançar o estudante de baixa renda, diversas medidas foram introduzidas, seja na facilitação da entrada no mercado de novas universidades privadas, seja na oferta de crédito facilitado aos estudantes, seja na oferta de bolsas privadas mediante renúncia fiscal do governo federal.
Como consequência dessas políticas, em 2017 havia 2448 IES no Brasil, sendo 296 públicas (12%) e 2152 privadas (87,9%). Passamos a ter 8.286.663 alunos matriculados no ensino superior, sendo 2.045.356 (24,6%) em IES públicas e 6.241.307 (75,3%) em privadas, diante de uma população de 207.660.929 habitantes.
3. Impacto das medidas sob o ponto de vista qualitativo
É possível afirmar, portanto, que, do ponto de vista quantitativo, essas políticas foram em geral bem-sucedidas, visto que partimos de 1,12% da população nacional matriculada em IES para chegarmos a 3,99%, em 2017 (fonte: Censos da Educação Superior - MEC).
Mas, o que dizer do aspecto qualitativo da oferta privada de ensino superior?
Como qualquer setor regulado da economia privada, foram criadas contrapartidas regulatórias da expansão do investimento privado na educação superior. A partir da Lei de Diretrizes e Bases – LDB da educação (1996), criou-se um aparato regulatório complexo e abrangente, destinado a assegurar a qualificação do ensino privado e público, por meio inicialmente do Exame Nacional de Cursos (Provão, de 1996 a 2003), depois pelo ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, desde 2004 até hoje), como parte de um ambicioso Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes, 2004).
Durante o período do chamado Provão, em que anualmente todos os graduandos de todos os cursos superiores se submetiam à avaliação do Ministério da Educação - MEC, o eventual baixo desempenho das universidades privadas nunca levou a qualquer sanção mais drástica. Quando, porém, sob o Sinaes, sanções progressivas começaram a ser implementadas em caso de deficiência no ENADE ou nas avaliações in loco, muitas IES se viram constrangidas a adotar políticas mais efetivas para melhorar seu desempenho. Nem todas as IES recorreram, contudo, a um esforço de melhoria qualitativa de seus quadros docentes, métodos de ensino ou aumento de rigor acadêmico.
A partir do Enade de 2009 pelo menos, detectou-se em IES privadas de grande porte a prática de seleção dos alunos inscritos para realizar o Enade. Diferentemente do Provão, em que anualmente todos os alunos que se formavam eram obrigados a fazer a prova, sob pena de não colarem grau, sob o ENADE a prova passou a ser realizada de três em três anos, e com critérios de enquadramento de alunos que deram margem a manipulações por diversas IES. Isso foi objeto de diversas denúncias publicadas na imprensa e processos administrativos originados no Ministério da Educação (para uma amostra, vide as edições de O Estado de São Paulo de 3, 5 e 16 de março de 2012 e de 13 de dezembro de 2016, ou da Veja, https://veja.abril.com.br/educacao/escola-de-fraudes-universidades-manipularam-resultados-do-enade/, em 2016).
Em diversos momentos, o MEC tomou providências em relação aos incidentes relatados, mas de forma claramente insuficiente para conter as manipulações, que levam universidades com milhares de alunos concluintes a inscrever apenas um punhado deles nas provas do Enade.
O resultado é que o ENADE, ponto de partida para o complexo sistema de avaliação da qualidade do ensino superior no Brasil, perdeu credibilidade entre os alunos, entre os professores e dirigentes universitários. Hoje o ENADE é uma preocupação para as IES privadas não pelo impacto positivo ou negativo que possa causar na escolha dos potenciais estudantes por frequentar seus cursos, visto que estes pouco se interessam pelo desempenho da universidade no ENADE. Aliás, a maioria dos alunos ingressa na universidade sem sequer saber o que é ENADE. A principal preocupação das IES privadas é relativa aos processos de supervisão pelo MEC em caso de notas baixas seguidas no exame.
Portanto, exceto pelo caso dos cursos jurídicos, cuja qualidade é aferida com maior rigor e credibilidade pelos exames da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, os demais cursos universitários oferecidos no Brasil não têm uma referência segura de qualidade com base nos critérios do MEC. Por sinal, os resultados do Exame da OAB são hoje o principal indicador que influencia a decisão do ingressante no ensino superior nos cursos privados de Direito, à parte os critérios econômicos e as poucas instituições privadas que têm um vestibular efetivamente concorrido.
É preciso ressaltar que nesse período de nossa análise verificamos o surgimento de muitas boas IES privadas. Entretanto, elas têm como característica geral serem cursos “boutique”, com reduzida oferta de vagas e mensalidades muito elevadas. São relevantíssimas e são muito bem-vindas, mas não se atende por esse meio a necessidade de democratizar o acesso à universidade, base das preocupações legítimas dos governos há um quarto de século.
E, como regra geral, as grandes universidades de massa que se criaram ao influxo das políticas de abertura de acesso, oferecem ensino a baixos preços, mas também a baixos custos, o que significa na prática que os alunos mais necessitados são os que têm o pior ensino superior e ainda pagam por ele.
Estando fora de questão que precisamos melhorar o acesso à universidade e que a universidade privada é imprescindível nesse processo, é certo também que não basta o aumento quantitativo da oferta de vagas, pois ele precisa ser acompanhado de uma elevação qualitativa do ensino superior.
Boas escolas para alunos bem-nascidos sempre houve no Brasil e sempre haverá. O desafio é oferecer aos alunos mais necessitados escolas de alta qualidade, capazes de transformar seu destino. Porque a simples detenção de um diploma universitário não tem sido capaz de assegurar um lugar ao sol no mercado das profissões liberais. Nesse sentido, estamos testemunhando um progressivo desaparecimento das escolas privadas de alta qualidade acessíveis ao público de renda mais baixa.
4. As tendências atuais no mercado universitário privado
Existe hoje no Brasil uma tendência objetivamente detectada no mercado de oferta privada de ensino superior. Instituições de Ensino Superior (IES) que foram criadas no século XX e detidas em geral por famílias ou pequenos grupos econômicos, e que ofereciam um ensino artesanal, fundado na relação professor-aluno-dirigente, estão sendo vendidas pela segunda ou terceira geração familiar a grandes grupos econômicos. Há mesmo quatro grandes grupos que têm suas ações cotadas em bolsa e que são os principais atores nesse novo ambiente mercadológico do ensino.
Os pequenos grupos tradicionais temem a concorrência de preços dos grandes grupos e a incapacidade de fazer frente às crescentes exigências do Ministério da Educação (MEC), que acarretam um aumento das despesas e dos riscos para a manutenção do negócio. Isso tem sido decisivo para sua decisão de vender as mantenedoras.
Por sua vez, as companhias abertas já atendem mais de 1.700.000 alunos do ensino superior (Kroton, 961.000 alunos, Estácio, 500.000, Ser, 152.000 e Ânima, 115.000, segundo seus próprios sites). Outros grupos de porte, sem ações na bolsa, como Unip (220.000 alunos), Uninove (127.000), Cruzeiro do Sul (75.000), Laureate (200.000), respondem por outros mais de 600.000 alunos. Ou seja, apenas essas oito empresas recrutam cerca de 2.350.000 alunos, vale dizer 37,65% do total de alunos cursando ensino superior privado no Brasil. E a fatia que detêm tende a aumentar, visto que é parte indispensável do seu programa de investimentos a ampliação da escala do negócio.
É indispensável, portanto, pôr uma lupa sobre o que propõem e praticam tais empresas. O que tem caracterizado a oferta de ensino por essas instituições?
5. As declarações de princípio dos grandes grupos privados
Sua principal bandeira tem sido a da inovação tecnológica como uma disrupção em relação aos métodos de aprendizagem tradicionais. Argumentam que os alunos de hoje são diferentes dos alunos do passado e novas técnicas pedagógicas são fundamentais para se atingir esse aluno.
Na prática isso tem se manifestado da seguinte forma: redução do tempo de aula presencial, aumento das atividades extraclasse, aumento do ensino a distância e das chamadas aulas-invertidas (“flipped classroom”). Além disso, adotam um sistema padronizado de ensino, muitas vezes conciliando o negócio editorial com o negócio educacional, ou seja, fornecem o material didático como parte integrante do ensino.
Esses grupos tendem a adotar a sistemática de diminuir o tempo que o professor fica em sala de aula e, em algumas disciplinas, limitam sua função a responder perguntas dos alunos, que supostamente já estudaram o assunto em casa. Essa estratégia é apresentada por tais grupos como uma tendência inexorável da nova pedagogia: “é assim que se faz nos países mais desenvolvidos do mundo”.
6. A despersonalização do ensino
Não tenho nenhuma resistência a observar e incorporar as inovações tecnológicas que se praticam nos melhores centros universitários do mundo. Mas o que de fato esses grupos econômicos praticam no Brasil é uma adaptação de estratégias utilizadas no exterior, com o aproveitamento apenas parcial das medidas.
Essas novas tecnologias não foram pensadas originalmente, nos países mais desenvolvidos, para reduzir os custos do ensino. Ao contrário, a introdução de novas tecnologias, inclusive aquelas que oferecem carga extraclasse, importam na verdade em aumento dos custos, pois as atividades são ali monitoradas por mais professores, em grupos menores de alunos. Sem contar o investimento necessário para desenvolver materiais pedagógicos de alta qualidade.
A argumentação e a publicidade propaladas por esses grandes grupos no Brasil não são capazes de esconder um fato de simples compreensão: a oferta de ensino a distância (e as estratégias conjugadas de atividades extraclasse) é muito mais barata que a oferta de ensino presencial. O principal custo de qualquer universidade é o professor presente em sala de aula. Por esse motivo, as pautas pedagógicas estão sendo definidas muito menos pela necessidade real do aluno, e estão ligadas à necessidade de aumentar a eficiência financeira da empresa.
Tome-se para comparação o sistema de atendimento ao cliente de qualquer empresa de massa (telefonia, TV a cabo, vendas pela internet, redes sociais). A lógica da organização do atendimento pode ser sintetizada assim: o mais caro é o atendimento pessoal; o mais barato é o atendimento por robôs. As empresas tentam resolver o problema dos seus clientes com robôs (chats). Se estes não forem suficientes, remete-se ao fórum virtual em que as FAQ (questões frequentemente formuladas) são respondidas pelos próprios usuários ou pela empresa. Se isso ainda assim não atender à necessidade do cliente, recorre-se ao telemarketing. Quanto menos pessoalmente a empresa se envolver, menores serão seus custos e maior será sua eficiência. Num mercado competitivo, empresas de massa não podem se dar ao luxo de atender pessoalmente seus próprios clientes.
Essa despersonalização dos serviços está ocorrendo no setor educacional privado de massa brasileiro. E não apenas para o atendimento ao “cliente”, mas para a própria oferta do serviço educacional.
Mas a pergunta que formulo é: é conveniente que se adote para o setor educacional superior privado, que atende em sua maioria esmagadora aos estudantes de mais baixa renda, um modelo que serve para a oferta de produtos e serviços como TV e vendas por internet?
7. O modelo artesanal e o modelo industrial de ensino
Vivenciamos um período de industrialização do processo pedagógico na educação superior brasileira, que vai esmagando aos poucos o anterior modelo artesanal que prevalecia. A lógica do modelo artesanal tem por pressuposto a confiança: o mantenedor contrata um gestor de sua confiança que implementará um projeto pedagógico compatível com os princípios educacionais da IES. O gestor formula uma estratégia de negócios e pedagógica, seleciona e treina os professores qualificados que partilhem de sua proposta pedagógica. Há um ambiente de liberdade relativa, com riscos assumidos pelo gestor e com autonomia pedagógica do professor.
Ao contrário do modelo artesanal de ensino, o modelo industrial tem por premissa a desconfiança. O mantenedor não precisa de um gestor qualificado para treinar professores em alto nível e formular decisões estratégicas. Afinal, o mais importante do processo pedagógico é o sistema e não gestores ou professores. O mantenedor contrata um gestor acadêmico que tem função meramente executiva das tarefas predeterminadas. Portanto, desconfia dele. O mantenedor sabe que paga um salário baixo ao professor e, portanto, desconfia dele. Decorre disso que não há autonomia pedagógica para o professor. Ele deve seguir um script bem definido por outrem. O sistema de ensino, assim, assume um papel de protagonista nesse modelo industrial, visto que assegura um mínimo de uniformidade num quadro docente marcado por um padrão heterogêneo de qualidade e pela falta de confiança na cadeia de produção do serviço educacional.
O dirigente de mantenedora típico nesses grandes grupos não tem necessariamente uma formação acadêmica, suas tarefas estão ligadas à “expansão da base de alunos” (essa é a terminologia adotada) e ao relacionamento com os acionistas. Há tipicamente um dirigente superior incumbido da inovação, um dirigente superior incumbido das finanças, ambos com funções deliberativas cruciais. Já o dirigente superior acadêmico em geral não tem autonomia decisória, mas atrelada à introdução e execução de um sistema de ensino.
Já dentro da IES mantida por tais grupos, o gestor acadêmico não tem prerrogativas de formulação de estratégias, não assume riscos, apenas executa tarefas de uma longa lista previamente fornecida. As reuniões deliberativas são realizadas por gestores de marketing, de TI e de recursos humanos, enquanto os dirigentes acadêmicos somente são comunicados das tarefas que devem cumprir.
8. O ensino como sistema
Gurus da gestão empresarial dizem que o futuro das mercadorias é o de se transformarem em serviços (como os carros e bicicletas de uso compartilhado) e a tendência dos serviços é a de se transformarem em sistemas. No caso do ensino superior privado brasileiro, os serviços já estão se transformando em sistema. Um projeto pedagógico uniforme é adotado em todas as unidades, em todos os Estados do país, pouco importando as especificidades regionais. Um sistema de ensino padronizado e centralizador das informações é instituído como forma de evitar que o custo baixo da hora-aula e a falta de dirigentes profissionais acadêmicos se tornem fatores de descontrole qualitativo absoluto do ensino.
O que se vê nessas IES mantidas pelos grandes grupos é a progressiva substituição do professor de carreira, titulado, por professores menos titulados e dispostos a receber um salário menor. Há também a insatisfação do professor de carreira, que se sente desprestigiado quando se passa de um modelo artesanal para um modelo industrial de ensino. Aquelas qualidades que o faziam ser admirado e respeitado pelos alunos não são mais levadas em consideração pela coordenação do curso e todo professor passa a ser um professor comum, submetido ao sistema de ensino.
Isso representa uma grande perda para a qualidade acadêmica. Professores altamente qualificados e treinados para atender aquele aluno em particular perdem sua colocação profissional e frequentemente abandonam a carreira pela progressiva falta de opções.
Fenômeno semelhante tem ocorrido com os alunos. Muitos vinham migrando de escolas mais fracas para escolas mais fortes ao longo das últimas duas décadas. Mas com o avanço progressivo dos grandes grupos na oferta de ensino superior, as opções vão se tornando cada vez mais escassas e, embora insatisfeitos, acabam se resignando a permanecer em IES de baixa qualidade.
E o que os grandes grupos de ensino superior privado brasileiro trazem só é negativo para a faixa da população com menor renda. Todos os que têm a possibilidade escolhem outras universidades, públicas ou privadas.
O quadro é alarmante de fato. Parece-me que é irreversível a política de abertura aos grandes grupos, iniciada há décadas. Não vislumbro a possibilidade de que o governo federal adote medidas de restrição ao avanço deles. Defendo a oferta privada de ensino superior como uma alternativa excelente à escassez de vagas no ensino superior público. Mas acredito que o modelo industrial das grandes corporações não serve ao propósito de elevar a condição social de milhões de brasileiros, pelo simples fato de que elas não estão preocupadas com a efetiva transformação do país, malgrado seus slogans em sentido contrário.
Ainda resta uma grande pergunta a ser enfrentada: mantidas as regras atuais, ainda assim é possível vislumbrar um futuro melhor para o ensino superior privado brasileiro? Estou convencido de que a resposta é positiva.
9. A tensão entre o acesso à universidade e a qualificação profissional
Como vimos, a tendência de crescimento dos grandes grupos na oferta de vagas no ensino superior privado brasileiro é irreversível a curto e médio prazos e isso traz efeitos negativos exclusivamente para a qualificação dos alunos de mais baixa renda. O pior ensino superior é justamente aquele que se oferece aos socialmente mais necessitados.
Vimos também que a abertura da oferta de cursos universitários ao setor privado a partir dos anos 1990 foi extremamente saudável. Até então era muito difícil o acesso às vagas universitárias, dada a extrema competitividade nos vestibulares do setor público. Com a abertura, um vasto contingente de alunos encontrou a oportunidade de se qualificar para o mercado de trabalho das profissões liberais. Esse processo mudou o destino de dezenas de milhares de pessoas. Num país tão desigual como o Brasil, tal política representou um alento àqueles que desejam que as distâncias sociais sejam reduzidas.
O problema que vivemos hoje não é mais o do acesso, pois há elevada oferta de vagas e cursos privados com preços acessíveis. O problema é o do enorme contingente de alunos que obtém o diploma, mas não se encontra verdadeiramente qualificado para o exercício da profissão.
Vou me basear no exemplo específico das faculdades de direito por dois motivos. Primeiro, porque diz respeito a minha própria experiência, 16 anos à frente de uma faculdade de direito na cidade de São Paulo, que me deu a oportunidade de conhecer em profundidade as necessidades sentidas por meus alunos. Segundo, porque o curso de direito tem a particularidade de exigir a aprovação no Exame da OAB como requisito para o ingresso na carreira profissional. Mais do que em outras carreiras, ter um diploma de bacharel em direito não assegura a prerrogativa do exercício da profissão. E, diferentemente de outras carreiras sem exame de acesso, o exame da OAB tem o condão de demonstrar cabalmente a insuficiência da qualificação auferida em universidades de massa.
10. O mau desempenho dos sistemas de ensino no Exame da Ordem
O exame da OAB é temido com justo motivo por todo ingressante na faculdade de direito. Ele deve saber que menos de 2 em cada 10 estudantes que se formarem serão aprovados. Desde 2010 o exame foi unificado nacionalmente e a mesma prova é aplicada a mais de 120.000 candidatos no mesmo dia, em todo o país, três vezes por ano. Já se submeteram ao exame da OAB, nos 28 exames desde então realizados, 3.386.118 candidatos, sendo apenas 647.567 deles aprovados (19,12%).
As universidades que adotam um sistema padronizado de ensino, ou seja, optam por um esquema pedagógico de tipo industrial, não vão bem no exame da OAB. Somente têm bom aproveitamento, bem acima da média nacional, as universidades públicas, as privadas tradicionais e algumas poucas faculdades que preservam o sistema artesanal de ensino. Não há nenhuma universidade de massa com bom desempenho na OAB. Em geral ficam abaixo da média nacional que, como já vimos, é de menos de 20% de aprovação. Isso significa que, a cada exame da OAB, cerca de 70 a 90 % dos alunos provenientes de escolas de massa são reprovados no Exame da OAB.
Soma-se a isso o próprio estudo publicado pela OAB que demonstra que o índice de aproveitamento no exame da Ordem é diretamente correlacionado à renda familiar. Entre os exames VII e XIII, segundo o Exame da OAB em Números (FGV Projetos e CFOAB, Vol. II, outubro de 2014, p. 36), os candidatos com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo tiveram a pior faixa de aprovação no exame, com apenas 11,3%. Esse desempenho vai subindo sempre proporcionalmente à renda familiar, até chegar à maior faixa da pesquisa, superior a 30 salários mínimos, em que a média é de 24% de aprovação.
Não parece restar qualquer dúvida sobre um dado crucial da realidade: nossos estudantes mais carentes têm tido os piores cursos universitários e isso em nada contribui para uma transformação do perfil de desigualdade de nosso país. E, se confirmadas as tendências que enunciamos antes, é de se temer que o quadro apenas se agrave, com o avanço inexorável dos grandes grupos econômicos que transformam o ensino universitário numa usina de diplomas ocos, de resto já bem conhecida.
Sem a aprovação da OAB nenhum graduado em direito consegue exercer a profissão, exceto nos raros casos em que ainda se admite ingresso em carreiras públicas independentemente de prévia experiência como advogado. Centenas de milhares deles estão recebendo de suas IES o diploma, e, se não são aprovados sequer na OAB, jamais passarão em concursos públicos, de um nível de exigência muitas vezes superior.
Traduzindo em números concretos, em média quase 100 mil egressos das faculdades de direito são reprovados a cada exame da OAB, o que prova que estão insuficientemente preparados para ingressar na carreira. A maioria deles é proveniente de universidades de massa.
Mas isso está ocorrendo sistematicamente em todas as carreiras. Somente é possível enxergar com clareza esse quadro no curso de direito. Nas demais, há uma silenciosa mas persistente rejeição pelo mercado a graduados mal preparados, provindo das universidades de massa.
11. É possível manter as esperanças?
Mas há alternativas a esse quadro desalentador? É preciso reconhecer que não haverá mudanças regulatórias que busquem cercear o predomínio desse perfil empresarial de grande escala no setor universitário privado. Mas, por experiência própria, sou levado a testemunhar que há iniciativas aqui e acolá que podem representar uma alternativa a estudantes e professores que hoje se encontram desestimulados com as perspectivas universitárias.
O MEC e o CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica devem manter-se atentos à necessidade de preservá-las em face do avanço das grandes corporações. Mas mesmo que não se criem incentivos ou proteções às iniciativas empresariais artesanais de qualidade, ainda vejo viabilidade econômica desses projetos no Brasil.
Tais iniciativas são perfeitamente capazes de conciliar o caráter empresarial do ensino privado e ainda oferecer ensino de alta qualidade a estudantes que não tiveram o privilégio de frequentar as melhores escolas no ensino fundamental e médio. Para milhares de estudantes nessas condições, essas escolas representam a esperança de um futuro profissional melhor, com chances efetivas de empregabilidade e não apenas a obtenção de um diploma decorativo.
Elas se caracterizam fundamentalmente por proporcionar a esses estudantes uma experiência pedagógica próxima a suas necessidades reais e, para tanto, é fundamental o papel do docente qualificado, treinado e vocacionado para a tarefa de superação das lacunas de formação do aluno. A realidade é que esses alunos chegam à universidade privada sem terem sido preparados suficientemente pelo ensino público gratuito. Necessitam aprimorar a leitura e a escrita, preencher lacunas culturais em artes visuais, literatura, música, cinema, história, geografia, passar a cultivar o hábito de ler periódicos em linguagem culta e dominar línguas estrangeiras.
Nenhum sistema industrial de ensino universitário é capacitado para entender as necessidades concretas de um aluno que vê o professor como um modelo de estilo de vida, de hábitos sociais, de mentalidades. Nenhum sistema de ensino padronizado pode proporcionar a criação de uma rede de relacionamentos pessoais que, sabemos todos, é a porta de entrada para o mundo profissional. Mais do que sistemas, precisamos de educadores na universidade privada. Um tipo de professor que se realiza transformando o destino de seus alunos.
E toda tecnologia inovadora é bem-vinda, desde que não se preste a ser um mero instrumento de redução de custos, mas um verdadeiro mecanismo de capacitação voltado para as necessidades do mercado e do profissional que se forma.
Devemos renunciar a fornecer a esses brasileiros alternativas profissionais de maior gabarito? Devemos nos conformar com que, precariamente formados na base, nunca poderão ter um destino mais elevado profissionalmente?
Nesses 16 anos como parte de um projeto privado de transformação social profunda aprendi que é perfeitamente possível a meta de elevar tais alunos a um plano muito digno. Eles assim o desejam e, malgrado as lacunas iniciais, submetidos a um programa altamente exigente, com professores que sabem exatamente do que esses alunos precisam, abraçam corajosamente a causa de serem os artífices de sua própria transformação pessoal.
Vi-os ano após ano, milhares deles, mudarem sua postura, sua forma de falar, de escrever, de se vestir. Prognostiquei aos calouros que, ao final do curso, estariam com os dentes quebrados de tanto comer pedra, mas estariam sorrindo na formatura, com a aprovação da OAB concretizada. Testemunhei sua passagem de alunos inseguros a profissionais capacitados e conscientes de seu papel na sociedade. Vi-os transformarem seu destino e o de suas famílias. São hoje mestres e doutores pela USP, PUC, FGV, Mackenzie, secretários de estado, juízes, promotores, professores consagrados, delegados, advogados muito bem-sucedidos. Muitos deles vieram das mais precárias condições sociais e financeiras de nosso país. E se não fosse pela universidade privada honesta, artesanal e consciente de sua missão social, jamais teriam revertido seu destino sombrio na sociedade brasileira.
E isso demonstra que o próprio mercado é carente desses profissionais. Ele não aceita o profissional desqualificado, por todos os motivos do mundo. Mas dificilmente há sobra de bons profissionais qualificados em qualquer carreira no Brasil.
Nesse momento é que um ensino superior privado de qualidade pode fazer a diferença. É possível sim conviver com a atual regulação que prestigia as grandes universidades de massa, porque também aprendi que há sempre um grupo significativo de alunos capaz de analisar criticamente o que estas oferecem e que está disposto a buscar a qualidade onde ela estiver, desde que acessível financeiramente.
Não precisamos aguardar a alteração da regulação do setor para acreditar na viabilidade de projetos privados que, conciliando com dignidade as tecnologias inovadoras e um quadro docente talhado para a missão de educar, formar e transformar alunos, cumpra o papel de extraordinária relevância que lhes cabe historicamente no Brasil.
Mas, sem dúvida, é preciso que todos acompanhem o que de fato está ocorrendo, para evitar que o modelo industrial sufoque por completo o ensino universitário privado artesanal. Nesse sentido, não tenho dúvidas sobre a necessidade de que MEC e CADE permaneçam conscientes de seu papel fundamental nos quadros regulatórios normativo e operacional, respectivamente.